quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

hipocrisias i

Viviam na minha rua, num ambiente de bairro em que as pessoas se conhecem quase pelo próprio cheiro e onde se passa algum tempo à janela, reconhecendo sempre as caras e as rotinas, dois tipos distintos de famílias. Podia caracterizá-las assim, de uma forma geral, por muito mais que houvesse a dizer acerca das pequenas singularidades de cada clã. Um dos tipos de família a que me considero pertença era o mais "equilibrado", por assim dizer. Depois havia o segundo tipo, ao qual pertenciam crianças com as quais brinquei e com quem me relacionava sem descriminações, mesmo percebendo as subtis diferenças que existiam no caos harmonioso das suas casas. Não conheci muitos filhos de pais separados. Os lares eram, na generalidade, hierarquica e religiosamente compostos pelo pai, pela mãe e pelos filhos, e até pelo ocasional avô ou avó. Já a vida familiar variava muito, de caso para caso.
Alguns dos meus companheiros de infância morreram prematuramente, na sequência de acidentes, incidentes, ou outras influências mais ou menos previsíveis. Alguns viveram experiências relacionadas com estupefacientes e têm um cadastro vitalício que parece fazer-lhes sombra e minar-lhes o presente e o futuro. Outros tantos foram pais muito cedo e, negligentes, pouco sabem dessa condição. Uma boa parte conseguiu juntar todas estas experiências numa mesma pessoa e partir sem um legado de realização pessoal do qual se possam orgulhar.
Gostava de poder olhar para trás e dizer que estes filhos não foram necessariamente os que cresceram num ambiente de ausência de calor familiar. Preferia não ter a certeza de que os seus pais, que passavam grande parte do tempo pelos cafés e aí alimentavam os filhos com snacks e batatas fritas, enquanto investiam potencialmente em cigarros os subsídios de desemprego, não foram os grandes responsáveis pelo fracasso que resultou das suas vidas. Mas não posso.
Hoje, quando por lá passo, reconheço na minha rua, alguns rostos. Há uma familiaridade nos hábitos e nos gestos dos que por lá permanecem. Continuam a existir os tais dois tipos de famílias. Reconheço-os de longe e não os menosprezo. As minhas sobrinhas brincam com meninos diferentes delas, tal como eu brincava, e não me parece mal detectar diferenças. Não sou xenófoba, nem elitista, nem desinformada por fazê-lo. Pior seria não reconhecer que há famílias tradicionais que, ainda assim, não proporcionam um ambiente onde seja fácil crescer e criar objectivos positivos.

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