segunda-feira, 2 de novembro de 2009

tributos

Pela música.
01.11.2009



"António Sérgio nunca esteve bem em qualquer estação de rádio. Mesmo quando a rádio era rádio. Porque António Sérgio é uma estação de rádio andante e uma estação não cabe noutra estação.

Para mais, é uma estação hostil às outras, contra as quais exerce uma guerrilha permanente. Mais do que meramente ingovernável - ou até uma oposição paciente - António Sérgio e a indissociável Ana Cristina Ferrão são um governo em exílio permanente. E com uma imperdoável agravante: é assim que gostam. E é nisso que insistem teimosamente. É lindo.

Os espanhóis da Prisa fizeram bem em despedi-lo. Estando livres de gratidão, memória ou preocupações da representação da boa música em Portugal, tiveram a coragem que faltou aos antecessores portugueses, ainda demasiado constrangidos pelo reconhecimento e pelo medo da superioridade musical de António Sérgio.

É importante frisar que não é de agora a tanga do mercado nem o fado do fim da rádio. António Sérgio só durou até 2007 porque se recusou a ir embora. Desde os anos 70 que agentes sorrateiros se agacham atrás dele, tentando puxar-lhe a cadeira, a ver se cai. Mas o homem sempre esteve ocupado de mais para reparar. Fincou os pés, sacou dos discos e fez o que sempre fez: o que lhe estava na real gana. De resto o desprezo pode ser a mais bela das distracções.

Ajudou também o facto de António Sérgio ser o melhor divulgador de música popular do nosso tempo - John Peel era magnífico mas tinha lapsos de gosto. Muito se perdoa a quem escolhe música boa tão bem, durante tanto tempo, com tanta arte e tanta inteligência.

A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito.

Claro que é preciso gostar de boa música - e de querer descobrir boa música nova - para perceber a grandeza e a utilidade brutal de António Sérgio. A nostalgia é um argumento inimigo. Hoje há muito mais música boa e muito mais música nova do que nos anos 80 ou 60. Mas continua a ser 0,1% de toda a música que se faz.

Essa proporção continua a mesma. O que mudou é a atitude geral da população. Dantes, a ignorância inibia e produzia falsos respeitos por quem se suspeitava "ter conhecimentos". Havia seguidismos acéfalos e dependências paralisantes, tudo exacerbado pelas dificuldades e desigualdades de acesso à música. Havia mestres: era inevitável. ("Mestres" no mau sentido, de professorzinhos de província.) Na rádio as directrizes dos mestres eram obviamente inseparáveis do acesso à música para que nos dirigiam.

Não era bom - até porque os mestres eram mais do que muitos e geralmente pomposos e autoritários, para não falar nos vendidos. Mas é inegável que, entre os pouquíssimos capazes de descobrir e defender música boa, o maior era e é António Sérgio. Por definição é um anti-mestre, desinteressado do tráfego de influências e da concordância dos seguidores.

Digo mal desse tempo - que era também o meu - para poder absolvê-lo do maior defeito dos tempos de hoje, apesar de serem musicalmente mais vastos e empolgantes: o relativismo ignorante. É ele que acaba por explicar a atmosfera que leva à lata de despedir António Sérgio.

Segundo o relativismo ignorante, ninguém pode dizer se uma música é boa ou não. É tudo uma questão de gosto. Depende das circunstâncias. Depende da idade. Às vezes sabe bem uma coisa que, noutra altura, sabe mal. Cada um é como é e aquilo que agrada a um ... perdoem-me se me fico por aqui no blá blá blá.

Tem ou não tem graça como esta atitude coincide exactamente com a conveniência comercialista do cliente ter sempre razão; que os números não mentem; que os ouvintes é que sabem; que os anunciantes é que pagam e quem somos nós para dizer que não está bem assim?

O pior é que esta humildade é uma subserviência e este deixar decidir, este respeito pelos gostos dos outros, é uma gulosa cobardia. Que vai acabar mal - porque quanto mais a rádio se recusa a ser minoritária mais as minorias vão fugir dela. O problema da massificação é que as massas não existem para depois virem agradecer o que se fez por elas.

A apologia do tudo-vale confunde-se sempre com a santificação da ignorância e daí até dizer que António Sérgio sabe escolher música tão bem como eu vai um passinho. A verdade é que sabe muito mais. Escolhe muito melhor. Arrisca mais e engana-se menos. É simples: António Sérgio sabe mais de música popular - no sentido de saber escolhê-la, que é o único que interessa - do que qualquer outra pessoa.

É por haver tanta música hoje - e tanto acesso - que a sabedoria selectiva de António Sérgio é mais valiosa e necessária do que nos tempos ditos áureos em que, verdade se diga, não era assim tão difícil separar o trigo do joio. A música de António Sérgio é como a boa música: não se deixa interromper. É ele que não deixa. O homem sabe o que vale e o que tem de fazer. É escusado atravessarem-se no caminho dele. O que menos interessa é a estação de rádio.

A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito.

Se calhar foi isso que custou à Rádio Comercial engolir. Não soube suportar o desprezo, talvez por saber que o merecia. Às vezes, quando existe uma pontinha de vergonha, é desagradável ter, mesmo ali ao lado, um exemplo tão claro de dignidade. De estatura. Desmotiva muito. Faz lembrar coisas que conviria esquecer, que atrapalham a marcha para a capitulação final.

Vai ter sorte a estação de rádio onde voltará a tocar a música de António Sérgio. Mas que fique desde já avisada que escusa de tentar desviar a caminhada do bicho. Em vão agitará no corredor papéis com números de audiências ou os amoques de focus groups. É escusado implorar-lhe que oiça "sem preconceitos" os CD de merda que vos interessa impingir. Não vale a pena atirar-lhe com a história dos tempos terem mudado.

Os tempos sim; a rádio outrossim; mas a urgência de descobrir e defender a música boa é a mesma de sempre. Ou maior ainda, dada a massificação da própria desistência de escolher e divulgar a música que vale a pena.

E não há ninguém que saiba fazer isso melhor do que António Sérgio. Que não faz outra coisa desde que faz rádio. Que não fará outra, mesmo que tentem impedi-lo. Para nosso bem - e, sobretudo, para bem de quem ainda não se sabe quem.

Ou então não - nem isso é preciso. A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito. Haja pressa em poder ouvi-la e saber dela outra vez."

Miguel Esteves Cardoso, Público 17 Setembro 2007

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