sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Miguel Torga - 103 anos

"Nunca houve em toda a montanha pastor como o Gabriel.
- Merecias outras ovelhas, homem! disse-lhe um dia o Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquianos, quando viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem tirar uma dentada.
- Deus me livre! Já me vejo maluco com estas...
Mentira. O padre tinha razão. Era uma pena ver tanta autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de animais. Nem se pode fazer ideia! O carneiro mais teimoso, mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e mudava de condição. Só não ficava a falar.
- Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças!
- Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente. Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e palavras que ninguém sabia fazer nem dizer. Nunca batia numa rés. O castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeição mal humorada. Mas bastava. Ao fim de algum tempo, cada cabeça como que porfiava em não desagradar ao dono, em viver sintonizada com aquele governo sem cajado. E dava gosto ver a disciplina com que o rebanho deixava o redil e atravessava o povo. (...)
(...) Mas esta comunhão instintiva com a natureza dos bichos não tentava o Gabriel alargá-la à natureza dos homens. Desses arredava-se discretamente, sem querer passar, nas relações com eles, do plano amorfo da neutralidade."

O Pastor Gabriel in Novos Contos da Montanha, Miguel Torga

Miguel Torga nasceu a 12 de Agosto de 1907.
Quando morreu, eu tinha já seis anos.
A 'companhia' dos Bichos e dos Novos Contos da Montanha ao longo da minha vida escolar foi um dos muitos factores que me fez tirar tanto prazer da leitura desde que me lembro.
A maior riqueza deste país é a sua impagável biblioteca.

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