Os vizinhos de cima são uma espécie de sogras malvadas, por defeito.
A comparação é tanto mais adequada se pensarmos que todos estamos na iminência de ser sogros ou sogras, da mesma forma que estamos na iminência de ser vizinhos de cima dos nossos vizinhos de baixo. A excepção são aqueles que optam por não ser sogros, ou simplesmente não acontece, e os que vivem em moradias ou no rés-do-chão, claro está.
Como vizinha de cima, e por isso também potencial "sogra malvada", tenho feito os possíveis para ser tolerante com a minha vizinha de cima, que ainda por cima tem crianças.
Mas ela não me facilita a vida.
Começa pelo facto de me acordar todos os dias, em rigor cerca de uma meia hora antes do meu alarme. E fá-lo a gritar. Na sua voz de desespero, não muito alta mas esganiçada, rouca de tão esganiçada. É indescritível. Imaginam como a broca do dentista atinge aquele nervo não anestesiado? Pois é esse efeito que provoca em mim a voz daquela mulher.
Os miúdos, esses por vezes fazem rolar uma espécie de esferas de chumbo (é o que parece mas devem ser berlindes) ao longo do corredor e de todos os compartimentos da casa. Fora isso, quase não se ouvem. Mas aquela desgraçada tem uma raiva aparente a tudo o que a rodeia, que se revela desde que acorda até que sai de casa, e imediatamente assim que regressa ao fim da tarde.
Ontem apareceu lá por casa, para tratar de coisinhas do condomínio. E aproveitou para conhecer de uma forma simpática, descaradamente subtil e aparentemente desinteressada, todas as divisões da casa. Com os miúdos à frente a perguntarem tudo e por tudo, e ela, com advertências delicadas e ligeiras, a seguir avidamente atrás deles.
Depois, lá voltou muito a custo, arrastando as crianças, para o seu ninho. Onde começou quase imediatamente a sua ladaínha enervada.
Aposto que ela não gosta do sítio onde vive e adorava ter uma moradia.
Eu também acho que ela devia viver numa moradia.
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