sexta-feira, 18 de março de 2011

adelina

A minha avó paterna vivia no alto da Trafaria, numa zona mal afamada pelo índice de ligeira criminalidade e nível de pobreza das gentes locais. Recordo-me particularmente da sua casa à beira da estrada principal, escondida atrás de um portão de madeira e das árvores e arbustros que despontavam no seu quintal. Quando chegávamos, os seus pequinois de mau feitio corriam até à rua para nos dar as suas ameaçadoras boas vindas e ela surgia à porta, calma e tranquila, com o habitual sorriso que mostrava a dentadura branca e muito certinha que usou desde que me lembro, a iluminar um rosto marcado por rugas vincadas.
Lembro-me sempre da Trafaria no Verão, periodo em que lá passávamos mais tempo, e de acordar com os raios de sol a rasgar as folhagens do imenso matagal que era o jardim da minha avó. A casa tinha um espaço em toda a volta, que nos permitia correr do jardim da frente até ao quintal das traseiras, onde havia uma pequena horta e uma capoeira. Pelas traseiras tínhamos acesso à casa, através de um anexo muito rudimentar. Os espaços eram pequenos e a casa era pobre. Lembro-me bem da casa de banho, um espaço frio, de azulejos brancos, com uma pequena janela que tinha sempre teias de aranha. O espelho era pequeno, velho e rachado. Haviam poucos objectos pessoais, apenas o essencial para lavar as mãos, um pente e uns ganchos para apanhar o cabelo de manhã no pequeno arranjo que usava sempre, e uma bacia antiga, apoiada no suporte metálico com o respectivo gomil. Sempre que penso na minha avó, lembro-me de trapos. Trapos e mais trapos. De trapos, fazia tudo. Os chinelos de quarto eram feitos de restos de fazendas quentes e grossas, pacientemente cosidas à mão, e ficavam completamente díspares, sem um formato bem definido mas o mais aperfeiçoados possível e de forma a aproveitar cada desperdício da sua costura.
A cama onde eu e a minha irmã dormíamos quando lá passávamos parte das férias de Verão, tinha um colchão completamente artesanal, feito pela minha avó, com enchimento de feno e trapos, que o tornavam numa massa disforme, pontiaguda aqui e ali, que picava e nos fazia coçar toda a noite, a ameaçar alguma alergia que o pó e os ácaros nos pudessem causar.
Tinha um medo terrível de me levantar durante a noite e rezava para não ter vontade de ir à casa de banho. Não apostaria que, na escuridão e no silêncio da madrugada, não houvessem pequenos rastejantes pelo caminho e a teia de aranha na casa de banho estaria certamente ocupada pela sua inquilina.
De manhã, cheirava sempre a café e pão torrado no fogão. Havia sempre leite fervido, doce, marmelada e manteiga. E muito açucar. A minha avó gostava de tudo muito doce e, como costumava fazer com os outros netos, tentava dar-nos muitas vezes a lanchar pão com manteiga abundantemente polvilhado de açucar, coisa que detestávamos.
Enquanto lá estávamos, o tempo corria mais devagar, ao ritmo da própria casa. Era como se ela própria se traduzisse em poucas pressas. Penso que em casa das pessoas idosas que vivem sós é comum que se sinta este ambiente, de não urgência para nada. A sala da minha avó parecia parada no tempo. Quase não se entrava lá. Existia uma televisão mas não me lembro nunca de a ligar quando lá passávamos férias. Era possível estar dias a fio sem nos interessarmos por tal coisa. A humilde mobília de jantar, as almofadas forradas a lã, os naperons e as molduras antigas pareciam estar ali com o propósito de ser apenas contempladas. Não convidavam ao convívio. Era à mesa da cozinha que se comia, se conversava, se preparavam as refeições e se costurava.
Nos dias de calor, acordávamos transpiradas do quente colchão de palha e metíamos pés ao caminho, até à praia. Descíamos a avenida, à beira da mata, passávamos a escola que tinha reputação de albergar os piores alunos de todos, o quartel, os bombeiros e seguíamos em direcção à Costa da Caparica. A avó ficava em casa, que já não estava para tais canseiras, e nós íamos pela fresca, cheias de gana. O regresso era muito mais penoso, depois do calor, quando o Verão ainda era Verão e ao fim da tarde o alcatrão ainda escaldava e não se sentia uma brisa. Sempre a subir, de volta à Quinta da Corvina, era com alívio que ouvíamos o ladrar dos cães e que nos sentávamos outra vez à mesa da cozinha, depois de um banho fresco de mangueira no terraço.
Tenho saudades da minha avó, da sua casa na Trafaria, dos meus tempos de criança, da sensação de felicidade ao fim de um dia cheio e feliz. Lembro-me dos dias em que o tempo dava para tudo sem termos de o esticar e de abdicar do que quer que fosse. Tenho pena de não ter avós e espanta-me que haja quem os tenha até tarde e não saiba apreciar o valor desse património inestimável.

2 comentários:

Nani disse...

Tenho ainda a minha avózinha querida mas pela falta dos outros compreendo o que sentes...
Queria deixar uma nota em memória da tua avó que mal conheci mas nunca irei esquecer, no dia em que um cão a mordeu e eu quase morri só de ver a mão enrugadinha e cheia de sangue e a tua avó com uma calma impressionante! Nunca me irei esquecer!

FavaRica disse...

Sabia que te ias lembrar desse episódio... :-D