sexta-feira, 11 de março de 2011

pai

Os meus sogros vão matar um porco este fim-de-semana. Adivinha-se algazarra e petisco. Para quem cresceu neste tipo de ambiente, são alturas de festa. Não é o meu caso. Sempre fui geograficamente suburbana, mas de hábitos bastante citadinos. A minha mãe já me disse alarmada, nem penses que o teu pai vai! Agradece o convite mas para isto não contem com ele! Eu também já avisei que não estaria presente, pelo menos para o espectáculo, mas não me importo de ir no dia seguinte, provar um bocadinho do bicho. O meu raciocínio é este: eu como carne, inclusive de porco, e quando o faço não penso nas (horríveis) condições em que eles vivem e nas hormonas que lhes espetam, portanto tenho de concluir que o Mantorras - alcunha simpática para o porquinho preto - até tem sido bastante feliz e a sua carne deve ser do mais saudável que há - eu própria lhe dei algumas folhas de couve. À luz deste raciocínio, consigo combater a imagem de que estou a consumir aquele ser vivo que no outro dia andava a chafurdar na sua pocilga.
Mas o meu pai é de outra natureza. Independentemente dos nossos defeitos e virtudes, ou até mesmo da nossa educação, existem pessoas com dons. Estou convencida que o meu pai tem um dom que não corre em mais ninguém da família. Sempre o achei diferente dos meus tios e de outras pessoas da sua idade. Sempre foi um trabalhador incansável e jamais terá sido recompensado por alguém como devia. Fez muitos sacrifícios ao longo de uma vida inteira e às vezes engulo em seco quando deixa entreaberta a porta para o seu passado. Tenho ideia de que nunca saberei metade do que sofreu em criança e mais tarde em jovem. Apesar da sua idade, esquivou-se à guerra colonial e apenas cumpriu os normais dois ou três anos de tropa, maior parte dos quais em Mafra, tempos que às vezes recorda com nostalgia, talvez porque a sua tarefa se confinava a pouco mais do que descascar batatas na cozinha e a poder dar-se ao luxo de lavar melhor as suas hortaliças, ao contrário dos que eram servidos. Acredito que a brandura da sua vida militar tenha contribuído para que a sua natureza calma prevalecesse. De resto, sempre me lembro de ver nele um homem com sonhos, que todavia sempre calou o seu lado emocional, em detrimento do que lhe era exigido e como consequência da quase inexistente relação com um pai duro e um padrasto negligente, ambos cedo lhe roubados. A sua postura de filho único no meio de raparigas também lhe amoleceu os modos.
Há dois anos perdeu o cão que lhe foi imposto pela minha irmã e que lhe fazia companhia nos últimos dez anos. Não era um animal que ele quisesse de início: a perspectiva da perda sempre o fez pensar duas vezes na hora de criar laços – neste aspecto, a minha mãe nem sempre teve vida fácil durante os últimos trinta e cinco anos, não há-de ser sempre agradável viver com alguém que, sendo bom e generoso, não gosta de se entregar. Há dois anos que usa, enrolada ao pulso, a coleira que o cão usava, grossa, de ferro, a lembrar uma bijutaria grotesca. As pessoas espantam-se. Eu não.
Também não me espanto que o meu pai, homem de outra natureza, não queira comer o Mantorras, e muito menos matá-lo. Não me espanta que, ao contrário de mim, ele não consiga ignorar o facto de que já viu o bicharoco vivo e já lhe fez festas no focinho e, só por isso, criou laços.
O dom do meu pai é a pureza. Uma pureza que admite falhas e defeitos, que não é a pureza dos santos, mas uma pureza que o distingue dos restantes de nós. Uma pureza que eu amo.

2 comentários:

nuno disse...

"A man after my own heart."

centrípeta disse...

São tão parecidos... os nossos Pais!! Mas acho que isso já o sabíamos, né? Não admira que nos sentíssemos/sintamos almas gémeas. ;)

Um abraço apertado, tua m.